segunda-feira, 26 de setembro de 2011

DISLEXIA Introdução


Em 1945, a Field Foundation recebeu verbas para uma pesquisa das características neurológicas e perceptuais de quinze crianças que apresentavam dificuldades de leitura. A pesquisa foi realizada na Mental Hygiene Clinic do Bellevue Hospital, e os seus resultados foram apresentados pela Dra. Lauretta Bender na Seção de Neurologia e Psiquiatria da New York Academy of Medicine, em 1950 e em Congresso da Orton Dyslexia Society, em 1951.
Lauretta Bender era, conforme seus próprios relatos uma disléxica e, por isso dedicou-se muito aos estudos que a auxiliassem a compreender o problema que ela diz ter sentido na pele.
O parágrafo acima é histórico: a Orton Society realizará neste ano, o seu 43º Congresso Anual (e logo veremos porque o seu título é Language and Literacy in the l990’ s); mas, em vista da quantidade de teorias e pesquisas científicas surgidas desde então, poderia parecer pré-história. Levando ainda em consideração alguns críticos do assunto talvez ficção científica.
Infeliz, ou felizmente, não é ficção científica. Estamos falando de uma pessoa que existiu e faleceu em 1987 - e que declarou ter sentido essa dificuldade em escritos que podemos ler ainda hoje, que possuía comprovada seriedade profissional e que nos legou pelo menos um teste, ainda muito usado. Nada a ver com as teorias que citam Leonardo da Vinci ou mesmo Thomas Edison; essas sim podem ter sabor de ficção científica, uma vez que nada nos comprova os reais motivos da escrita espelha de Leonardo da Vinci. Aí sim ficamos no campo do nada científico da mera especulação. A partir do título que me foi proposto para este artigo pensei que seria útil trazer antes um breve resumo da tendências diversas surgidas desde aquela apresentação de Lauretta Bender para em seguida citar também brevemente algumas tendências e pesquisas atuais. Alguns leitores já estudiosos e usuários de alguma teoria aqui exposta acharão partes conhecidas ou mais do que conhecidas. Outros acharão que omiti justamente aquela teoria que eles seguem ou seguiram em determinado momento.
Quero frisar que nem meu resumo do passado nem o das tendências atuais pretendem esgotar o assunto que é muito vasto. Por falta de espaço nem falarei sobre as pesquisas desenvolvidas na Bélgica e Canadá algumas das quais com analfabetos ou semi-analfabetos brasileiros;das pesquisas francesas e inglesas; das alemãs e holandesas ou das que são desenvolvidas no Instituto Weizmann de Israel. Seria uma pretensão; seria inclusive impossível de realizar em algo menor do que um compêndio, tal a quantidade de teorias que têm surgido em relação as dificuldades de leitura/escrita e suas causas enquanto pertencentes ao campo da linguagem e, por conseqüência ao pensamento e aos processos cognitivos.
Cito três exemplos:
Ajuriaguerra, em 1952, dizia: "a nossa experiência nos demonstra que não é possível encontrar explicações unicausais aplicáveis a todos os disléxicos em geral. Encontramos disléxicos com ou sem dificuldades de lateralização, com ou sem dificuldades no desenvolvimento da linguagem, com ou sem dificuldades espaço-temporais, com ou sem problemas emocionais. Todavia, cada uma dessas disfunções pode influir na organização léxica, e muito freqüentemente se trata de dificuldades conjuntas".
Ou como dizia F. Kocher da Universidade de Genebra: "as dificuldades de leitura às vezes têm outra origem, que aliás pode se associar à dislexia, tais como: rebaixamento mental, deficiências visuais e/ou auditivas, problemas na linguagem falada e compreensão, plurilinguismo, transtornos motores, doenças freqüentes, trocas freqüentes de escola ou professor etc., e, de resto, o termo dislexia evolutiva é usado para se insistir no fato de que a dificuldade para aprender a ler desaparece completa ou parcialmente no decorrer dos anos "
Conceito justamente oposto ao de Clarke, que considera o uso de termo dislexia específica a de evolução ser devido ao fato de a criança não ser prejudicada pela dificuldade até que entre a escola, sendo que o quadro evolui (piora) quando não tratado, e conforme aumentam as solicitações...
Fica claro, antes de mais nada, que se formos entrar em detalhes de cada uma dessas definições, a discussão pode ser longa e frustrante. Ou, como diria Ochsner, professor de didática preventiva em Zurique:
"as explicações continuam sendo, ou fáceis de entender erradas, ou difíceis de entender e confusas"
Conforme Vellutino, em artigo publicado no Scientific American Ameriban em março de 1987 dislexia é um termo genérico aplicado a crianças de inteligência normal que têm dificuldades para identificar a palavra impressa, como resultado de defeito constitucional, cuja origem está provavelmente no sistema viso-espacial. É caracterizada por versos e espelhamentos e indefinição da lateralidade.Diz ainda que a criança cuja primeira língua de alfabética, ao invés de ideográfica ou pictográfica, é mais suscetível de apresentar o problema. Diz também que a (dislexia pode ser corrigida por um ensino muito estruturado ( highly structured) e treinamento viso-espacial.
Vellutillo da State University of New York at Albany, em 1989, apenas dois anos depois de publicação do artigo, ponderou que cada um dos critérios ali citados deveria ser atentamente revisto, já que a maioria das definições ali constantes era baseada em teorias já comprovadamente superadas por pesquisa científica. Apenas dois anos depois, sugeriu que deveríamos ter cuidado com critérios superados limitantes para o desenvolvimento da criança.
Ainda citando Oshsner, "é mais atual termos uma visão global da criança do que dividi-la em fraquezas parciais para depois tratá-la..." ( 1989)
Ninguém quer negar a existência nem o sofrimento daqueles que lutam para ler um parágrafo ou um texto que seria simples para outros; ou dos que, após ler com certa lentidão, perdem a noção do conteúdo, ou seja, sua preocupação com a decodificação (aspecto parcial) faz com que percam o aspecto profundo e global - o sentido do texto, o significado. Quem lida com estas crianças sabe que muitas, ainda que não todas, têm muita dificuldade em compreender certos significados da linguagem oral não escolar, como trocadilhos ou mesmo piadas. Mais importante do que o nome ou rótulo que se dê a este conjunto de sintomas e poder compreendê-los a ao indivíduo que os apresenta. O caminho é diferente para cada um; a solução também.
ASPECTOS HISTÓRICOS
Quase um século se passou desde as primeiras publicações sobre problemas de fala e linguagem, aliás por Sigmund Freud, em 1891, ocasião em que criticava Broca e Wernicke. Para explicar os diversos tipos da afasia motora preferia deixar de lado os aspectos topológicos e realçar os funcionais.
Mais tarde, com o conceito do inconsciente, Freud evoluiu para um paralelismo entre erros de leitura e escrita com os lapsos de linguagem. Em Psicologia da Vida Cotidiana (1905) apontou para o fato de os equívocos na leitura e na escrita se submeterem aos mesmos princípios que governam os lapsos de linguagem, da estreita relação entre todos os empregos da linguagem. "o que não é absolutamente surpreendente se nos recordarmos da relação interna dessas funções, a saber. que a fala e a comunicação oral precederam a escrita e com ela a leitura" Nesse mesmo trabalho (página 778), citou como oposto ao seu um trabalho de Meringer & Mayer ( 1895) sobre Erros da Expressão Oral e Leitura. cujos autores teriam Investigado as regras que regem estes erros, esperando poder deduzir destas regras a existência de um determinado mecanismo psíquico, no qual estivessem ligados de um modo especial os sons de uma frase ou palavra e também a palavras entre si, além da descrição de trocas, omissões, substituições e contaminações, explicadas pelo valor psíquico dos sons fonéticas.
Nos anos seguintes, houve intensas pesquisas, a maioria de cunho médico sobre as causas desta dificuldade, além de um contínuo debate sobre a sua existência. Existência enquanto entidade médica - qualquer que seja a área - ou conseqüência de perturbações emocionais? Existência enquanto patologia ou apenas parte de um processo normal de aprendizagem? Poderíamos citar mais uma dúzia de questões levantadas pelas diversas especialidades profissionais que também foram surgindo durante o século.
Em 1930, o neurologista americano Samuel T. Orton chamou a atenção para a relação existente entre as dificuldades de leitura em crianças na faixa de primeira a quinta séries primárias e dificuldades que elas teriam na linguagem oral como um todo já nos anos da pré-escola, chamando, assim, a atenção para um transtorno básico, anterior à leitura, nas funções da linguagem.
Nos anos 50 e comício dos anos 60, houve uma onda de entusiasmo, apoiada também pelas novas tecnologias surgidas no pós-guerra, pelas teorias que enfatizavam os aspectos perceptuais. Naquele período, a distinção entre aprendizes visuais e auditivos deu lugar ao anteriormente citado conceito lingüístico, levando à toda mais do que conhecida gama de exercícios para treinar estes aspectos da percepção visual e/ou auditiva. Neste período, surgem também as divergências causais - o "splitter" reconhece não somente dislexia, mas também diversos subtipos; o Lumper" extremista considera que todos os sintomas são rnanifestações de uma única e abrangente síndrome de dificuldades de aprendizagem, controvérsia esta que permanece até hoje.
Em 1962, no clássico Reading Disability, e em 1964, em Developmental Dyslexia, MacDonald Critchley definiu a dislexia da seguinte forma:"'dislexia significa leitura defeituosa. Esta leitura defeituosa pode ser devida à incompetência em conseqüência de lesão cerebral ou degeneração; ou pode representar um fracasso evolutivo para tirar proveito das instruções de leitura" Che Kan Leong, da Universidade de Saaskatchewan (Canadá), em artigo publicado no Annals of Dyslexia (1991 ), criticou certos termos desta definição. Disse ele: "leitura defeituosa significa dificuldade apenas com a palavra ou também com o discurso, além do nível da palavra? Se apenas da palavra, significa decodificar, e SE, de que maneira? Se for a nível de compreensão, significa "gramática funcional na sala de aula " e/ou compreensão geral? Além disso qual o papel da capacidade de raciocínio na capacidade específica de leitura? Segundo Leong, os conceitos ali citados - defeito dificuldade e/ ou diferença - estão entre aqueles que continuam a atrapalhar os pesquisadores e os clínicos. É que na verdade, estamos lidando basicamente com um processamento pouco eficiente da linguagem e do sistema de escrita destas crianças. Considerou, ainda, que seria instrutivo e razoável comparar estas definições com outra mais atualizada e neuropsicológica feita por Steven Mattis (1978): "Dislexia é um diagnóstico de desenvolvimento atípico da leitura) quando a criança é comparada com crianças de idade, inteligência, programa instrucional e oportunidade sócio-cultural semelhante que, sem tratamento, deve persistir e é devida a um defeito bem definido em qualquer uma das diversas funções corticais específicas .
Esta definição fica praticamente impossível de ser usada no Brasil, pela inexistência de oportunidades sócio-econômicas-culturais semelhantes. Uma discussão mais completa desse problema sócio-cultural-educacional é um tema vasto e atual que mereceria um artigo à parte, pois é um quadro que não influi apenas na leitura/escrita. De qualquer modo, é verdade que, em muitas regiões da periferia de São Paulo, maior centro cultural da América Latina (!??!), ler e escrever se torna um artigo de luxo e de consumo quase inútil: ler o que quando não se tem o que comer?
Voltando a Orton, convém assinalar que sua teoria sobre inversão de símbolos parece um pouco limitada - a proporção de inversões visuais comparadas com a de segmentos silábicos ou encontros consonantais é pequena. O que não evitou teorias sobre os problemas de coordenação visomotora e de movimento dos olhos, havendo desde as teorias que prescreviam treinamento ocular (Tinker, 1958) até os mais recentes e elegantes estudos que consideram que o movimento dos olhos reflete processos de monitoramento cognitivo (Rayner, 1978, e diversos outros autores alemães). Devem ser destacados os resultados de Stein & Fowler (1982), que falam de uma dominância ocular instável provocando problemas na visão binocular, levando Benton (1985) a notar que o fator visual não deve ser totalmente descartado na dislexia.
Houve e há ainda diversas teorias neurologizantes que tentam estabelecer uma relação causal entre problemas neurológicos menores e problemas de aprendizagem, inclusive os de leitura/escrita, sendo muito duvidosa a relação causal entre estes sinais menores e a capacidade de aprendizagem escolar. Atualmente, vem sendo levantada, nos Estados Unidos, a bandeira do ADD (attention déficit disorder) ou dificuldades de atenção-concentração, como uma síndrome causadora de muito mais problemas práticos do que na realidade se verifica, e devendo, segundo seus defensores, ser tratada quimicamente com o metilfenidato (Ritalina), mesma droga que serviria também para harmonizar a coordenação cerebral-vestibular (que estaria relacionada com uma incoordenação visomotora).
Não quero entrar em maiores detalhes nesta área médica que não é minha, mas quero lembrar que um ardoroso defensor americano desta teoria e medicação foi duramente criticado por médicos brasileiros presentes no último Congresso da ABENEPI em Blumenal/91. A mim, parece que, entre os leigos, o sucesso destas teorias ou rótulos de cunho mais médico-neurológico, com a possibilidade de exames definitivos tipo eletroencefalograma, tomografia computadorizada e outros, e com medicação no final da consulta, seria devido ao fato de fornecerem aquela resposta rápida e tão desejada para abaixar rapidamente a ansiedade em relação à busca de uma compreensão para o problema do filho ou aluno.
Existem também, nos Estados Unidos, pesquisas interessantes, como as feitas com gêmeos e na área genética. Outra, desenvolvida há anos no Dyslexia Unit do Beth-Israel Hospital, coordenado pelo Dr. Albert Galaburda, professor de Neurologia em Harvard, faz uma correlação com uma doença auto-imune da mãe, lúpus eritematoso que, mesmo quando não se manifesta na mãe, poderia afetar o cérebro do feto durante a gestação através de uma descarga de anticorpos, criando Utopias e displasias que afetariam a área da linguagem. Estive visitando este centro e conversando com Galaburda, inclusive para saber a incidência desta malformação nos cérebros estudados e qual seria o seu uso prático dos resultados. Segundo ele, estas Utopias e displasias aparecem em cerca de 30% de todos os cérebros, mas em 100% dos cérebros de disléxicos, e o objetivo da pesquisa seria conseguir uma espécie de vacina ou outra intervenção ainda intra-útero, ou seja, preventiva.
São muitas as teorias e causas, muitas delas conflitantes entre si, muitas ainda a serem confirmadas, e parece-me que o cuidado maior que deve ter o profissional a lidar com o ser humano é estar atento e não embarcar em modismos que poderiam prejudicar, ao invés de ajudar uma criança. E nunca esquecer que todas estas teorias estão, na verdade, direta ou indiretamente, colocando a causa ou o problema na criança, o que é outro ponto que nunca podemos perder de vista, principalmente em um país onde o ensino é o que é.
Não há diferenças significativas em termos causais entre as teorias e estudos americanos e europeus. O que prejudica, no meu ponto de vista (endossado por diversos pesquisadores americanos com os quais discuti esta questão), na visão americana, é o excesso de pesquisas que devem ser feitas por causa do sistema de ascensão acadêmica e de distribuição de verbas que existe nos EUA. Esta forma de trabalho acaba dissecando tanto os problemas que faz com que os próprios pesquisadores percam de vista a questão global, o indivíduo e os aspectos psicodinâmicos, mais respeitados e considerados na Europa. De qualquer modo, ambos priorizam hoje os estudos no campo da psicolingüística e neuropsicologia.
A visão atual
O antigo enfoque para dificuldades da leitura como um déficit visoperceptual foi desmontado por Vellutino já em 1979, quando reviu as evidências e enfatizou o papel das habilidades verbais ou lingüísticas da dislexia. A teoria de Vellutino sugere que maus leitores (poor readers) tem dificuldades em usar códigos semânticos (apreensão do sentido de uma frase ou de um conjunto de frases/ texto), sintéticos (a estruturação gramatical) e/ou fonológicos (associações som-símbolo, significado-significante), tanto para armazenar como para resgatar informações.
Mais recentemente, pesquisadores como Siegel & Stanovich (1988, 1989) propuseram que habilidades lingüísticas gerais (por exemplo, semântica) são importantes componentes no conceito de inteligência, mas que a dificuldade de leitura independe da inteligência, sendo considerada mais como um déficit fonológico específico do que como uma deficiência lingüística geral (Wagner e col., 1987).
Wagner e col. (1987) examinaram três grupos de pesquisas que se desenvolveram independentemente, todas, porém, relacionando as habilidades fonológicas com a leitura: (1) a consciência Monológica (consciência de e acesso ao sistema Fonológico ou de sons da língua); (2) recodificação Monológica para obter acesso léxico (conseguir ir de uma palavra escrita ao seu referente léxico pela recodificação dos símbolos escritos num sistema baseado em sons); (3) recodificação fonética para manter a informação na memória.
Embora haja evidências que apontam para uma habilidade lingüística geral, Wagner e col. ( 1987) fornecem bases para uma distinção entre consciência fonológica e recodificação Monológica na memória, e apresentam uma relação causal entre consciência Monológica e aprendizado da leitura. Tanto Stanovich quanto Frank Duff,v e col. ( 1991 ) confirmam o fato de que os testes gerais de inteligência nada têm a ver, pois medem as tarefas cognitivas verbais, o mesmo podendo ser dito para os testes de prontidão, que não medem habilidades de leitura especificamente, mas apenas dificuldades ou habilidades globais, em que se podem identificar os maus leitores tipo garden variety e em que a dificuldade de leitura se associa a outras dificuldades globais, enquanto que o disléxico tem uma dificuldade específica a nível da consciência fonológica. Sugerem eles que a dislexia deveria ser definida por uma tarefa Monológica, mais especificamente a leitura de logatomas, ou seja, uma tarefa de recodificação Monológica para acesso ao léxico. Há ainda, segundo eles, evidências de que a consciência Monológica e o processo de leitura sejam recíprocos: o fato de ler melhora a consciência fonológica, mas sem ela a leitura fica muito dificultada, gerando assim um círculo vicioso. Recentes estudos de Liberman e col. (1991) trazem a dislexia como uma deficiência da consciência fonêmica, teoria amparada por uma variedade de pesquisas anatômicas, psicofisiológicas e neuropsicológicas.
Esta pesquisa também ajuda a entender certos dados clínicos que antes confundiam os estudiosos: o fato da descodificação fonológica ser uma habilidade muito específica explicaria o fato de algumas crianças terem dificuldades nesta tarefa - portanto disléxicos para esses autores - e terem bom desempenho verbal em testes ou serem lingüisticamente hábeis de outras formas.
O fato de ainda existirem dúvidas sobre a existência da dislexia, segundo Rosenberger, do Massachusetts General Hospital de Boston, reside em que a maioria das pesquisas são feitas com crianças pré-selecionadas, por serem população de clínicas; quando as mesmas pesquisas são realizadas com população não selecionada - grupos aleatórios - de alunos, surgem dúvidas sobre a relevância de todas estas variáveis como fatores de má leitura em geral.
Conforme Shaywitz, assume-se geralmente que o fracasso em aprender a ler representa uma entidade ou síndrome específica, distinta da distribuição normal de maus leitores. Ao invés de representar o final de um continuum composto por bons e maus leitores, a dislexia é vista como uma desordem biologicamente coerente e distinta de outros problemas menos específicos de leitura. Esta teoria de bolo que os disléxicos formariam no final da curva normal de leitura é sustentada inclusive por Rutter & Yule, que consideram estas dificuldades específicas de leitura como uma discreta entidade específica, teoria que serve de base para uma série de pesquisas sobre a neurobiologia de dislexia, seu diagnóstico e tratamento. Esta teoria tem ainda muitos seguidores, pelo menos nos Estados Unidos.
O próprio Shaywitz coordenou talvez o mais recente e bem controlado estudo longitudinal com população de comunidade regular, o Connecticut Longitudinal Study, no qual foram avaliadas crianças de escolas públicas durante os anos de 1983-84. Foram escolhidas crianças representativas da comunidade de forma aleatória, sendo o critério de exclusão apenas a presença de dificuldades sensoriais marcantes e de problemas psiquiátricos graves. Participaram 445 crianças (235 meninas e 210 meninos) divididas da seguinte forma: 84,3% brancos não-hispânicos; 11,2% negros; 2% hispânicos; 0,9% asiáticos; 1,6% de raça ou grupo étnico desconhecido. A dificuldade específica de leitura foi definida como sendo um inesperado fracasso para leitura em função da discrepância entre o nível previsto de leitura - em função do nível de inteligência avaliado pelo WISCR e o nível real de leitura. Este estudo permitiu discordar da crença geral de que a dislexia é uma entidade diagnóstica específica, pois os dados não confirmaram esta hipótese. Antes sugerem que a dislexia ocorre ao longo de um continuum que se mistura imperceptivelmente com a habilidade normal de leitura. Isto significa que não há um ponto de corte exato que possa distinguir crianças disléxicas de outras com dificuldades normais de leitura (poor readers), mas que os disléxicos simplesmente representam a porção final deste continuum de habilidades para leitura.
Shaywitz, finaliza considerando que esta dificuldade para leitura ocorre em graus de maior ou menor severidade, assim como a hipertensão, e que a variabilidade inerente ao diagnóstico de dislexia pode ser tanto quantificada como prevista com a aplicação da escala ou curva normal de distribuição.
Considerações Finais
Apesar da citada divergência entre os que defendem fatores pluri ou unicausais, fica patente que a maioria das pesquisas é voltada para a busca de soluções unicausais, que já Ajuriaguerra descartava. Claro que isso é também uma decorrência do próprio procedimento de pesquisa, que deve ter uma hipótese a confirmar, principalmente as do campo biológico, neuroquímico etc. Na verdade, a prática clínica nos mostra uma predominância de fatores pluricausais, incluídos aí, além dos individuais, os familiares, sociais e psicodinâmicos. Isto sem falar da qualidade do ensino no Brasil e da incongruência de, no Brasil, sermos obrigados a nos apoiar em dados e pesquisas estrangeiros - predominantemente - uma vez que o aluno que nos vem sai do sistema educacional e social brasileiro.
De qualquer forma, a conclusão de Shaynvitz, citada acima, permite uma abertura talvez sugerida pelo próprio título da próxima Conferência da Orton Dyslexia Society Language and Literacy-, termo mais amplo que dislexia. Ou talvez uma outra tradução do termo dislexia, conforme cita Drake Duane, da Arizona State University: "Dislexia pode ser derivado do termo puramente grego "dys") pobre ou inadequado) "legein" (falar), portanto palavras no sentido léxico ao invés de gramatical, e, portanto, linguagem em geral. Linguagem em sentido amplo, mais do que um conjunto de símbolos gráficos, mas mesmo a nível de discurso do sujeito, envolvendo aspectos inconscientes e culturais profundamente arraigados de visão do mundo". Como diz Mannoni: "...importante não é suprimir o sintoma, e sim procurar decifrá-lo, entender sua causa, entender o que a criança procura dizer, de maneira ruidosa, numa linguagem sem palavras". ou numa linguagem alterada.
Certo que essa escuta não satisfaz pais e escolas numa sociedade competitiva, onde o objetivo principal é passar de ano, e não o bem estar da criança. Só este bem estar poderá torná-la sujeito do desejo, sujeito da ação que transforma o significaste em significado. De qualquer forma, parece que temos muitas teorias, nada de definitivamente conclusivo, e muito a pesquisar. Se, neste vai e vem de teorias, conseguirmos enriquecer nosso trabalho com uma ótica isenta de pré-julgamentos e abrangente, no sentido de uma visão multidisciplinar, o ser humano visto por nós será apenas beneficiado.

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